Recordar: choro
"Fazes parecer tudo tão fácil e eu vou chorando comovida a ler as tuas insistências e lembro-me que também tinha a capacidade de ser corajosa e que tinha espaço atrás das costas para onde atirava aquilo que volta não volta me tentava impedir de ser feliz... era só o que faltava! Quando dizes que somos NÒS eu choro porque tenho tantas saudades de mim capaz, capaz de desfrutar, capaz de partilhar, capaz de sonhar, capaz de perspectivar, capaz de desejar, nunca tive feitio para cobardias e vitimizações e por isso seguia sempre em frente, mas afinal estava cá tudo e tudo junto é tão pesado, acho mesmo que se partiu ou estragou irremediavelmente qualquer coisa. Choro porque fui viver sozinha quando tinha 15 anos e tive de gerir o dinheiro para a comida que faltava e a não ter ninguém que me mandasse para a escola e tive medo. Choro porque vivi em quartos alugados em casa de pessoas muito esquisitas que não viviam como aquelas que eu conhecia e tive medo. Choro porque passei fome a primeira vez, grávida da M. quando vivi na Ericeira e tive medo. Choro porque a M. nasceu 2.480 Kg e eu não tinha casa onde viver, fui para um quarto alugado sempre a sorrir e com tanto, tanto medo, tinha 18 anos. Choro porque levaram a M., os crescidos e eu tive de ir lá buscá-la "sozinha" à força e tive terror de não conseguir. Choro porque passei fome mais uma vez sempre a sorrir com uma filha e o futuro dela nos braços e tanto medo. Choro porque acreditei com todas as minhas forças que podia gerir o medo e passar-lhe ao lado e continuar a abdicar de mim, sempre o medo. Choro porque o P. morreu e com ele uma parte de cada um que o conhecia, tantos medos. Choro porque afinal estava sozinha nas minhas convicções de compromisso, nos valores que passei para as minhas filhas, o sofrimento nas caras delas, que medo! Choro porque passei fome mais uma vez, à escondida das filhas, enquanto vendia batatas e frutas aos vizinhos do meu prédio, da minha rua, sempre a sorrir... que terror! Choro porque tive de fugir do olhar das minhas filhas que precisavam de garantias de subsistência e de futuro e eu adulta e mãe... tanto medo. Choro porque não tive colo para mais uma parte de mim, terror! E finalmente choro porque sinceramente não percebo como pude passar por tanto, tão sozinha de família tão carente de amigos que tentei preservar o mais que pude numa medida o mais justa, legítima, possível para eles e para mim, tanta mágoa. É que esta coisa de família tem que ver principalmente, descobri recentemente, com uma coisa que é decisiva, o compromisso! Tanto medo! Problemas todos temos na vida e eu até acho que sou a responsável por tudo o que me dispus a viver e a aprender nesta vida, ou seja são oportunidades. A questão agora não se prende com a razão, mas sim com a incapacidade que tenho, fisicamente, de não temer, mesmo que seja por um dia só. As minhas filhas também têm saudades minhas. Sabes que penso muitas vezes na minha velhice e como vou viver nessa altura, de quê quero eu dizer, não me parece que aguente ver as minhas filhas a terem de me sustentar. Também não aguento voltar a passar fome que no meio da abundância me parece sempre horrivelmente gratuita. Achava que sabia um bocadinho quem era e para onde ia, mas afinal não sei e nem quero ir a lado nenhum".
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