Caí no buraco, de repente estava ali.
O calor, de verão, quente, parado, do Alentejo. Fui de manhã, com a mãe-amiga, as duas cúmplices e contentes, juntas.
Uma casa, um telheiro, mesas alguidares, homens e mulheres, carne de dois porcos, alimento para todos os que ali foram ajudar, até ao ano que vem. Estranham-me apenas no segundo antes, do meu primeiro sorriso, para logo em seguida, ficarem contentes por mais dois braços. Para eles é assim simples. Fico encarregada de tomar conta do fogão que vai cozinhando petiscos e preparando o almoço. Embalo carnes e banhas, congelo em doses, misturei temperos. Ninguém questionou nunca, se eu o saberia ou poderia fazer, tenho dois braços… Quase todos mais velhos, eles e elas, marcados desdentados, leves… Debaixo do telheiro corre uma aragem morna a contrariar o calor de verão avulso. Os homens afiam as facas e separam, limpam, cortam migam. Um cachorro chamado Andreia Joaquina da Silva, uma cadela velha a Maravilha. Contam-me que nem sempre foi assim, homens junto das mulheres a fazer aquele trabalho. A eles cabia-lhes matar o bicho. Mas que agora já é diferente. Encho pela primeira vez os pulmões de ar, suspiro fundo. Sinto-me bem ali, só eu, acompanhada, segura… A mesa grande da cozinha começa a compor-se. O panelão de sopa farta, borbulha, as primeiras carnes, derretem na gordura fresca, os temperos, os cheiros dos coentros, alhos, pimentão. Uma senhora de cabelo branco, vestida de preto, vai lavando a loiça. Faz também pacientemente uma salada de frutas, e outra de alfaces e tomate da horta, perfeitas. Corta-se o pão fresco e denso. Todos à mesa, já há tarde. Aqui o impulso foi maior e os homens sentaram-se todos juntos de um lado e as mulheres do outro. O calor agora lá fora está no máximo, o cachorro gane porque ficou sozinho, e a D. Orlete, senhora da casa, - coitadinha da Andreia Carolina da Silva… não quer ficar sozinha! Um homem levanta-se e vai abrir a porta à cria, que sossega debaixo da mesa e dos nossos pés.
Lição de vida, falou-se e ouvi falar de tudo, da natureza, das plantas e doenças e dificuldades deste ano, trocam-se sabedorias e relaxa-se para a sopa a abarrotar no prato. Os impostos, a horta, os políticos, a agricultura, Cuba, o casamento do Lobo Antunes, as febras os torresmos fininhos, azeitonas, a enorme e maravilhosa salada, batatinhas. Vinho tinto, claro, a senhora de preto bebe Coca-Cola zero, porque está a tomar medicamentos. – A Coca-Cola deve ter qualquer coisa, que até limpa uma moeda. Sabes Joaninha, aqui podem faltar muitas coisas mas ninguém passa fome, dá para todos. Só não há para quem não quiser trabalhar! Acho que consegui ainda assim sorrir, ainda que com o olhar desfocado de quem assistia à explicação mais certa e simples, de toda a minha vida.
Ainda fomos à horta, onde estivemos as duas, em silêncio, sentadas no chão ao sol a apanhar ervilhas e favas no meio de um mar de flores, de papoilas. Suspirei fundo outra vez.
Regressámos em conversa, com tempo e intimidade e as emoções demasiadas. As lágrimas caíam agora no silêncio, pus os óculos escuros e chorei o tempo que durou o pôr-do-sol.