"Foi em 2003, aquele ano que todo somado dava 5. Foi na sequência de um fim de tarde ou início de noite, um dos mais horríveis que vivi, estava lá a Sol… Bem, mas essa parte já escrevi noutra carta e por isso adiante, horror, horror, tristeza, tristeza, perplexidade, crescer? Hospital de Santa Maria, urgência dos adultos. Nunca lá tinha estado antes. Tristeza, perplexidade, tantos velhos sós. Ortopedia, a voz do médico observava-me, curioso a minha mão e a mim. Tristeza dizia eu, sentia. O Mundo está doente, ouviu? Pela voz soube que o médico tinha ouvido, pela voz soube que o médico tinha sentido. De receita na outra mão, saí e fui ter com a A. que estava à minha espera. Enquanto percorríamos os corredores para abraçar o escuro, o médico aparece a correr num entusiasmo da procura – se precisar de alguma coisa, se precisar de conversar... Eu confusa e certa do Mundo doente, agradeci e até hoje nunca mais o vi. – Quem era aquele? Perguntou a A. em jeito de queixo caído. – O médico, acho… só o ouvi. Respondi eu triste, tão triste. – Mas é lindo! – Exclamou a A. numa tentativa desesperada de me animar, entretanto comigo no escuro, da noite fria que eu não sentia. – Ah sim?! E?! O Mundo está doente! A M. tem exame amanhã e não tem que saber hoje, destas coisas do Mundo. Enrosco-me, perdida, no edredão e apesar do Mundo doente, durmo. Acordei a meio da noite com a dor da mão e do Mundo a correrem novamente para mim. Fechei os olhos devagarinho e fingi que continuava a dormir, para que não me vissem… lembrei-me então do médico, da voz que me via, que me sentia. E fiquei-lhe agradecida, porque num Mundo doente, existia assim, enquanto eu adormecia... Estávamos os sete, juntos e alegres, íamos andando em direcção à casa, o MST orgulhoso e entusiasmado caminhava ligeiramente à frente. Era uma casinha, pequena, baixa (como gosto de casas…) com uma fachada branca caiada, com uma porta e uma janela, nada mais. Entrámos e a luz juntou-se à nossa alegria. Estávamos numa sala, apenas cheia de luz, com duas janelinhas quadradas, uma de cada lado. Em frente um corredor largo baixo e inclinado avançava entrecortado por outras salas de sol e de luz. Eu estava feliz e excitada. Sabia porque estávamos ali. O MST estava muito agradecido… e queria retribuir. Tinha-nos levado àquela casa atelier/museu, tesouro, da mãe dele, para que pudesse-mos escolher um presente, um para cada um. Íamos atravessando as salas, tortas e diferentes, cheias de amor enquanto eu olhava para alguns quadros, um aqui um ali… Chegámos! Nunca tinha estado num Jardim assim! Estava vivo este Jardim! Um lago, árvores, flores, pássaros, um Sr. Ouriço, borboletas, luz tanta luz! Peixes que saltavam, as cores mais vibrantes que alguma vez tinha visto, pedras vivas! A brisa morna e eu numa excitação urgente, voei! Voei naquele Jardim tão vivo, voei baixinho por cima do lago onde molhei os dedos dos pés. Os sons, as cores! E eu a voar fazia parte de tudo, do todo e era feliz. Reparei então que no meio de toda aquela vida estavam tantas outras coisas maravilhosas. Instrumentos antigos, bonecas e bonecos, roupas encantadas, brinquedos e tesouros! Percebi porque é que eram tão maravilhosos… cada um tinha uma história feliz para contar e faziam parte do Mundo, que não está doente, da dona daquela casa. - Vá lá, depressa, não temos muito tempo – disse o MST. Comecei a ajudar os outros a escolherem os tesouros que mais se pareciam com eles. Olha S. aquele acordeão! Olha D. aquele comboio! Corríamos de um lado para o outro encantados naquele Jardim e um a um abraçados aos seus novos tesouros, que podiam agora continuar a história feliz. Faltas tu Joana! Vá depressa que não tenho mais tempo, dizia o Miguel. Olhei em volta um pouco aflita. Afinal de contas é difícil escolher assim… à pressa. Pois… há uma coisa… tenho a certeza que deve estar por aí. Mas provavelmente é demasiado preciosa e não quero abusar… Sabes, acho que sei o que é que gostava de ter… - Então diz, depressa, que temos mesmo que ir. Bem, está bem, gostava muito de ter os personagens da Menina do Mar! – Disse eu quase em euforia semeada de algum pudor despudorado. O Miguel sorriu e respirou fundo. Durante um segundo o Jardim vivo susteve a respiração, até o ouvir dizer: - Pois, parece-me uma escolha importante, um dos tesouros mais queridos da minha mãe. Um tesouro assim precisa de ser conquistado, mais ainda. Eles estão aqui, neste Jardim, é verdade, mas para poderem ser teus tens que adivinhar onde estão. Não os podes procurar a não ser com o olhar, com o coração. Agora o meu coração batia forte, tão forte! E se não consigo? Onde estarão? A Menina do Mar, o Caranguejo, o peixe, o polvo… sim o polvo com os seus tentáculos! Compridos e finos… devem estar todos juntinhos assim, a dormir num sono encantado, à espera. E se eu não os encontro? Agora que já são tão meus… Olho para tudo com a atenção do coração. Aquele banco vivo, deste Jardim… comprido como os tentáculos… a base do banco parece uma caixa… Será? Depressa acabou o tempo, Liberdade tens que escolher. Sim… aquele banco…? – Vai lá ver, tenta abri-lo, não pensei que conseguisses… se conseguires abri-lo de um gesto só… - suspirou o M. Corri para o banco! De um gesto só? Não tem fecho. Eu agora passava as mãos naquele banco e sentia-os vivos, lindos! Não tem fecho… talvez este rebordo… sim só pode ser esta ranhura… abriu! E lá de dentro saltaram maravilhosos, a Menina do Mar o Caranguejo, o Peixe, o Polvo os seus tentáculos! Compridos e finos! Todos! Abracei-os feliz e ria, ria e estava tão feliz! Acordei, a M. tem hoje exame e o Mundo que está doente suspira-me que ainda pode, que ainda sabe ser feliz."